quinta-feira, 4 de setembro de 2014



         Morre-me nos lábios a água

Morre-me nos lábios a água de tanta sede oculta.
Por ela sei do rio que desperta no sangue
a cintura do fogo
e acorda nas virilhas
o indizível êxtase da luz.

Uma ânfora apenas guarda o fluir das mãos
mergulhadas no cio de todas as palavras,
e sortilégios outros que ao barro confiaram
os seculares desígnios de tão intenso lume. 

São rios clandestinos os lábios desta sede
de imaculadas águas.
Com eles ousarei, secretamente,
a transgressão das margens;
direi que me pertencem os pequenos delitos
de quantos marinheiros intentaram na areia
um cais onde aportar os abismos do corpo,
e gritarei  teu nome em cada gota ausente,
mordendo na garganta palavras interditas.


Fernando Fitas – Inédito 2014
(Exercício sobre um guache de Francisco Simões

concebido em 1992 para capa de outro livro do autor) 

quarta-feira, 3 de setembro de 2014


Alentejo




Comove-me a branca serenidade da cal
embebedando de luz as fachadas das casas,
ancestralidade singular de quem as construiu
para habitar um tempo
eternamente feito de futuro,
onde as manhãs despertam,
no limiar das flores
que dizem das janelas,
quantos perfumes circulam nas calçadas.


Há um remoto soar de vozes em cada esquina,
como se uma sentinela permanecesse ainda
contando das searas a dimensão das espigas,
e o latido de um cão,
que ao longe reclama 
a breve companhia de um afago,
quando o vento se abraça às velhas oliveiras
na volúpia de um fogo intemporal e sábio.


Tudo aqui são raízes falando por silêncios.
Entre barros e pedras,
só o pó dos caminhos
sabe os itinerários de homens e animais. 
Eleva-se da terra um cheiro que me dilata as veias.
Este cheiro pertence-me,
este sol
tão despido como o rio
que me ofereceu a água tantas vezes,
volta-me agora a refrescar de infância.

Fernando Fitas - Inédito

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Sobre uma pedra escrevo
(  (A  propósito de uma varina de Francisco Simões)

Sobre uma pedra escrevo
a claridade infinita dos teus olhos
iluminando a praia a que aportaram
todos os barcos
cansados de viagens.

Há prodígios nos dedos
desenhando na areia
inavegados rios
em busca de navios.
Em seus porões vazios apenas a memória
de outras longínquas águas
e um secreto desejo
ainda reclamando
o derradeiro pólen das palavras.

Sei-me sentado aqui
há muito tempo,
entre um templo de luz
que tudo esconde e nega
e a sedução plena da miragem,
insinuando no vértice dos lábios
um nome pelo fogo inominado.

Entardecem-me as têmporas
e as mãos
somente reconhecem do teu corpo
a volúpia do quanto recusaste.
É o instante então de celebrar-te,
deixando-te na pedra onde te escrevo,
o aroma que o mar
colocou nos teus cabelos,
para que possa, enfim,
contemplar-te.

Fernando Fitas (Portugal)


segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Um sheik troca tintas

Texto que encontrei numa gaveta onde costumo guardar outras coisas. 
Apesar do tempo já decorrido sobre a data em que foi escrito, permanece actual. 

Não há campo maior onde quem volta
se sinta mais ferido e humilhado
e se rebele e ouse e denuncie
o despudor notório e imbecil
de quem não sendo nada se presume
um  sheik  numa  arábia proclamado.

E nesse enlevo torpe de quem bebe
o arroto que exala e se desprende
da sua bebedeira de vaidades,
não poderá saber o verbo certo
quando o substantivo é igualdade.

Não sei se verdade é, mas há quem diga
ter-lhe fugido a mão para a pedra certo dia
quando soares falou de rio maior,
'lapsus linguae' que um UDP menor não consentia.
Contudo, esse artilheiro anos volvidos,
esquecido do disparo de seu gesto
às hostes socialistas aportaria.

Por isso aqui vos digo e reafirmo:
Não há campo maior onde aconteçam
burricadas mais vis e indecentes
e tropelias outras que por decoro não conto,
porque atentados são a quanta gente
lhe deu o beneficio do seu voto
fazendo de um troca-tintas presidente.


Eis porque vos repito sem temor:
Não há campo maior onde aconteçam
burricadas mais vis e indecentes.


        F. Fitas.  inédito 2003 

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Militante (apenas) de utopias

 Caçador de esperas e de sedes,    
 ou pescador apenas de utopias,
        aqui retorno agora como o vento
 para saber das pérolas do rio.

Tornara-se imperioso ser da água,
não apenas a gota que reclama
a dádiva de um sopro
quando o leito das fomes principia,
mas o azul das chuvas e a falas
que convoquem  a seiva da semente,
onde germina  a ânsia mais secreta,
de quem erguendo sonhos alimenta
vértices de fogo e ousadia.

Venho escrever nos muros as palavras,
para  desenhar um dedáleo de ventos
quando o musgo dos dias se anuncia,
e como quem retoma clandestinamente a velha harpa
aqui me reinvento, me reafirmo,
militante das coisas impossíveis,
oferecendo somente as minhas mãos despidas e tão débeis
nas quais carrego (ainda) um ramo de utopias.

Aqui cheguei descalço
só de olhar
os caminhos que há tanto me esperavam.
E recusando sempre o quanto pretendia
avancei pelos campos para beber
o eclodir do cântico dos pássaros
logo que as árvores sabem
dos primeiros sussurros
na folhagem.

No corpo
o mapa de todos os lugares
que ao largo me avistaram,
sem que houvessem logrado apenas o aceno
de um oblíquo olhar,
onde não cabe mais que um golpe de asa.
Talvez aí tenha nascido a cicatriz difusa
que à alma se colou secretamente,
dizendo mais de mim do que as palavras.

Não pretendam por isso, que fale sobre o modo
de colorir as sombras,
quando o sol incide sobre as formas e as distorce.
Sou militante apenas de meus passos,
exijo unicamente o que pressinto.
Não reivindico qualquer lâmina de água
derramando-se em tórridos desertos,
ou o sibilar do tiro que se acha
pela vertigem da presa derrubado.

Entre o disparo da bala e o seu alvo
há sempre um espaço ferido que se cala.
Eu não me calarei!
Mesmo que a voz me morra e só me reste o espasmo
de um coração de pássaro delido,
sei do bulício dos vales riscando traços de luz
na opacidade cinzenta das montanhas;
do viço da areia roçando-se nas águas;
o suspiro do ar quando toca nos lábios
da mais pura mulher
e a subtil ternura da corola dos cardos
pelo orvalho.

Todos eles me habitam
como o silêncio instiga a transgressão no fruto das searas,
assesta de raiva as hastes dos espinhos
e sussurra revoltas tão antigas
que as mãos dos camponeses preferem olvidar.
De todos  retenho  secretamente a alquimia
onde repousa eternamente o sortilégio
que me tornou um militante (apenas) de utopias.
Inquieta-me a arrogância das montanhas

Inquieta-me a cinzenta arrogância das montanhas
espreitando há dois mil anos o bulício dos vales,
(qual águia intemporal tombando sobre as casas),
como se a sua sombra intimidasse as chuvas,
impedisse as flores de romper entre as pedras,
ou proibisse as subterrâneas águas
de construírem asas em seus lençóis freáticos. 

Há ofícios tão velhos e tão gastos
que parecem eternos.
Contudo tão inúteis quanto o pó sobre a estrada,
ou as cinzas de um lume que há muito se extinguira.
Não sabem das carícias entre a terra e as ervas,
os afagos trocados entre as aves e o vento,
os olhares de onde emerge o cheiro da liberdade…

Sabem unicamente da arrogância vil
que a si se concederam
porque apenas conhecem a vocação das lavas.


Fernando Fitas - Inédito 2014



domingo, 13 de julho de 2014

Sofia entre o lajedo

Quiseram matar-te uma segunda vez;
soterraram-te os ossos entre as pedras
para que a livre geografia das palavras
definitivamente se apagasse
e não pudesses voltar a ser do mar
a menina que houvera proclamado
Navegações e Ilhas na comunhão das águas.

Presumiram talvez que sob a pompa
com que te encarceraram no lajedo
oculto ficaria o eco do teu canto.
Não te souberem ler estes que hoje
pretendem apagar a tua voz
fuzilando-te, assim,  cobardemente
como os que foram fuzilados em vigilas sem data.