quarta-feira, 25 de novembro de 2015


   Aquece as minhas mãos


Aquece as minhas mãos nos teus joelhos hoje.
Há nelas o ruído de um frio perturbando o silêncio,
o rumor de um gemido subindo pelo sangue,
o estilhaço de um grito ferindo na garganta
e um nó no pescoço, por dentro da ausência,
que dói até aos ossos.

É nas mãos este frio. Morde a pele e as veias como cães sem destino;
pelo sangue se interna rosnando suas fúrias
para suster a presa e afiar os dentes.
Tão ávido de morte, de gelo se contenta,
mas não sabe, contudo, que os frutos em teu ventre
se alimentam de sílabas fraternas
que adejam primaveras no vórtice da língua
e doam à cidade solidários jardins.

Fita-me bem nos lábios e saberás ainda das flores
que nasceram das pedras,
reclamando a luz de quantas velas confiaram seu derradeiro ofício
à  suprema missão de outorgar afectos
e preservar vestígios de ternura
na improvável  memória da calçada:
São flores que extravasam a solidão de um verso,
com pétalas que explodem no coração da(s) rua(s);
sobem como perfume à altura dos olhos
e desprendem os rios escondidos sob as pálpebras,
restituindo aos lábios a única palavra
que recusando ocupa o horizonte branco da saudade.


Fernando Fitas                Novº. 2015

Foto: Internet






terça-feira, 24 de novembro de 2015




  
Deixa a fala espraiar-se

Deixa a fala espraiar-se em teu olhar,
deitar-se nas palavras quando a boca se cerra
para conferir aos dedos o domínio da sombra, a leveza da luz,
ou apenas o rasto que do silencio emerge,
deixando na memória a rosácea lembrança de um fogo sobre a pele.
Excedentária é somente a semente sem fruto,
o possível lugar que ao abandono oferece
o viço da flor que houver em nossas mãos.
Tudo o resto é eterno como um beijo na água;
uma espiga de trigo cegando de amargura o gesto da colheita;
uma cortina abrupta de vento nos cabelos;
a rectilínea ausência que o coração das aves empresta  a cada voo.

Quotidianamente embrulhamos desejos
no lençol da infância,
com a  secreta esperança de adiarmos a morte indefinidamente.
Assim coleccionamos vestígios e destroços;
acumulamos raivas, revoltas e cansaços
e o suave veneno que nos impede os braços
de disparar num sopro os estilhaços de rosas
nas vitrines dos bares aonde não entrámos,
mas onde celebramos afectos e ternura  
erguendo nossas taças.

Recusa-me contudo moratórias
que intentem soterrar o rio ainda na nascente
ou adiar o resgate de quantos sonhos e  pão
colocamos sobre a mesa.
Não é este o instante de conceder aos olhos a demora finita
das trágicas noticias que os jornais nos revelam.
  
Quem carrega a espingarda nunca assesta o disparo,
não cede sua mão para soltar o tiro,
porque em seus pés de chumbo se cumulam disfarces
de (in)veneráveis ritos,
que apenas reconhecem
(entre a fuligem espessa que seus gestos ilude)
a arrogante sombra do poder  dos cifrões.

Morte ominosa esta, que despedaça vidas
na insuspeita inocência da(s) calçada(s)!
Não deixes que a sombra de um petardo pese nas tuas pálpebras;
um pássaro nocturno venha exibir a presa
na interdita superfície da janela,
ou um ruído ignóbil incomode as flores
que as crianças semeiam à beira de um sorriso.
Por elas, não te cales! Bebe-lhes cada gesto.
Ergue os olhos e sonha. Compulsivamente.
Mesmo que os pulsos sangrem. E nada mais te reste
do que a  fala que habitará em teu olhar  - eternamente.

Autor: Fernando Fitas        Novº 2015  
( foto: Internet)






sábado, 21 de novembro de 2015

O Silêncio da Fala


Antes que um resíduo de vento se insinue sobre as árvores
e não seja mais do que nudez e abandono
o que seus ramos falam,
eis-me aqui:
exposto à delituosa corrosão do silêncio,
para saber de cor o respirar das rãs numa lagoa seca,
o sussurrar dos fenos quando o fogo da lâmina
subitamente lhes decepa o caule,
ou o ruído da sombra num campo abandonado.

Poderá vir a chuva reclamar penhores desconhecidos
que a caducidade das folhas  ignora.
Estou aqui como um louco ou um mendigo,
a quem roubaram a tranquilidade diária do hospício
ou a amável companhia de uma esmola de sol.

Um bando de aves chega para atestar que a solidez dos ramos
conhece mais da terra que a semente.
É no vício do olhar que explode suas asas
e as folhas se oferecem ao bulício da queda.
Uma mulher suspende o andar junto à margem do rio.
Sabe talvez que alguém se banhará algures nas suas águas
quando chegar o verão,
para guardar na pele a essência das flores e dos arbustos
que perfumaram  um dia (a) sua infância.

Não tenho porque temer.
As minhas mãos abertas procuram nas palavras
o primitivo som do breve aceno
que seu perfume antigo espalhou no meu casaco,
emprestando a meus dedos,
inebriados de prodígios e  sonhos,
a luz de todas as florestas onde ninguém ousou entrar.

É nas palavras que o tempo se dissipa e encontra refúgio.
É com elas que diz da solidez das pedras;
a dureza versátil do barro,
a matricial temporalidade das flores
num campo minado de raivas e afectos.
Guardai a minha fala assim que o rio transborde
e as margens se aconcheguem  à caricia das águas.
Nela haverá, ainda a polifonia de todos os naufrágios   
que as marés testemunham e os deuses ignoram
- tão ávidos de sede, como o vinho dos mortos,

tão prenhes de eternidade que nem o céu vislumbram.



Fernando Fitas            Novº. 2015


terça-feira, 17 de novembro de 2015

Sob a Luz de Paris

Queima-me intensamente os lábios
a indefinição do que seja a palavra,
quando um degrau de sombra marca a sua presença
na inviolável imperfeição da luz.
Não sei se é apenas uma língua de fogo,
descendo, inexorável, os degraus do silêncio,
por onde flui um rio, quase água, quase mar,
de desígnios ocultos nos domínios da sede,
ou difusas memórias de lugares ou de aves
que chamam pelo nome os recessos do vento.
Estou, assim, dividido, entre a evidente transparência da sombra
e a absurda opacidade da luz,
que rasga nas palavras a esdrúxula inutilidade
de quantas consoantes à língua se colaram
para habitar apenas os subúrbios da fala.
Há momentos na vida em que olhos não sabem
mais do que brevidade da fuga ou do espanto
de soçobrar à esquina da penumbra
para reter talvez os retratos antigos
que as paredes e o tempo guardaram nas molduras.
Por isso não vacilo. Não olho. Não respiro.
Qualquer gesto imprudente pode ser, afinal,
o derradeiro acto que reduz a estilhaços a luz sobre o lajedo
ou o tiro que deixa um legado de ausências
escrito a fogo e a sangue no coração da pedra.
E mesmo que a chuva se derrame no Sena,
sob a luz de Paris só a noite se abate.
Novembro de 2015
Fernando Fitas

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

  Hei-de chegar um dia à Gronelândia

 













Hei-de um dia chegar à Gronelândia
com um bouquet de rosas no olhar
e uma fogueira acesa em cada mão
para riscar a minha frágil sombra
na insensibilidade austera  do(s) deserto(s) de neve
onde o vento se acolhe na solidão do frio

Terei nos bolsos um poema de Grade
com uma “rapariga sentada, corpo torcido, sonhando com a aldeia”,
esse lugar remoto, 
cuja existência se apagou, há tanto tempo,
do mapa das nossas itinerâncias,
que nem  as aves recordarão a rota de tão longínquo voo.

As grandes migrações, sei-o há séculos,
são as que se ausentam definitivamente do coração das árvores,
sobem com/como os rios, os caminhos da sede,
entregam as raízes à profundez das águas
e se lançam no abismo de refractários passos.
Por isso, eu vou à Gronelândia desafiar os deuses
que retiram das casas os homens indefesos,
lançam barcos de angustia em inocentes mares
e festejam ainda sobre o pó das cidades
sem que um olhar de espanto se cole à sua alma.

Não sei da Gronelândia mais do que os livros dizem,
e no entanto sinto que sob o glaciar algo estrebucha e vibra,
como se um punhal de silêncio e de raiva
irrompesse entre os dedos de uma débil  criança,
para esventrar montanhas ou desenhar apenas  uma fenda de luz
que  permita afinal à fúria das palavras
reclamar para si a cor e os destroços
de quantas intempéries a neve acumulou.

Com eles sei ainda
que hei-de alcançar um dia a Gronelândia
com um ramo de cravos no olhar
e um sorriso imperecível no vértice dos sonhos
que a si próprio se baste e saiba eliminar
esta evasão endémica de barcos suicidas
que em demanda de vida se sepultam no mar.

Fernando Fitas

Amora, Novembro2015




quinta-feira, 5 de novembro de 2015

 Memória de Reikiavik




Não há em Reikiavik mais espaço para o sol.
As nuvens o resguardam do olhar das janelas.
Tudo é negrume e frio como se fora inverno
e um deserto de neve escorrendo das montanhas
para entregar a água aos barcos  que no caís
ocultam suas redes em sedes ancestrais.

Há talvez pescadores afogando num bar
a solidão das pedras que a lava modelou
e a permanente ausência de flores
é a perene herança,
que  em seus  secretos desígnios 
o magma lhe outorgou.

Guardo por Reikiavik uma ternura intensa
e um odor a enxofre que se instalou na roupa
e perdura nos poros e na pele 
não sei há quantos anos;
dos fiordes apenas uma ténue lembrança
retida na tranquilidade de remotas lagoas
que do mar exiladas
por ele eternamente reclamam.


Ah, mas o azul naufragante dos olhos das mulheres,
é um chamamento que me impele,  embriaga e incita,
a pousar o olhar na luz exuberante
que mora/habita em seus cabelos,
-mesmo se um vulcão lança no horizonte 
cinzas de rocha, carvão e lama 
e a cidade, aos pouco, re-entardece.


Fernando Fitas - Amora,  Novembro de 2015

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Excerto de In "O Ressoar da Águas"

À melodia breve das palavras
confiei este dizer de esperas e afectos
Talvez neles se sinta (ainda) o marulhado vento que os trouxe
ao resguardado leito das lembranças
com que entreteço as horas e os dias
destes difusos tempos desavindos

Não conjuguemos mais o verbo consentir
nem detenhamos quantas palavras haja que se assomam
à janela dos lábios requeridos
para que inteira seja a suculenta festa
pelos cravos e pólen prometida

Não refrear o passo não ceder
aos constantes apelos da inércia
Ousar erguer o punho essa bandeira
com que festejámos o devir
antes que tarde fosse e não houvesse
tempo de consagrar Abril em Maio


Doemos também um dedal de silêncio
aos rios imaginados da memória
que preservados foram em seu leito

Deixar que se enalteçam e contentem
em transbordar barragens ou açudes
sulcando um novo curso p’ra seu leito
na alba do porvir que se adivinha
no mais alto postigo das manhãs

Depositemos aí o fruto recolhido
nas mãos de quantas mãos ainda haja
esperando os parcos grãos que confiámos
pudessem pertencer a nossa herança


Contemo-los um a um como se fossem
o derradeiro espólio que nos sobra
desse instante maior que nos coubera
e soltemos as inquietas trovas que soando
notificaram um dia nossos passos
a sulcar novos trilhos   a dobar outros velos
p’ra neles se internar em caminhadas

Longe ficou entanto a rebeldia
de um tempo que foi nosso e instigava
a transgredir nos versos as fronteiras
de quantas névoas houve que impediam
o livre acesso a quantos intentavam
conferir novos alentos e afectos
aos horizontes outros vislumbrados.

É hora digo  enfim  de repartir
os haveres que no modesto alforge nos ficaram
Um cabaz de aloendros e de ventos
uma roca de alentos que resiste
um punhado de estrelas e de cinzas
e um anelo de raivas e de mágoas
que em nosso peito lavra e nos aquece

Não bastante contudo concedamos
para acender ainda a viva chama
do lume que emprestava a alegria
a quantos sonhos   recordo  proclamámos

In O Ressoar da Águas, (2004)

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Soubemo-nos em Maio

Soubemo-nos em Maio,
porque o perfume das tílias do quintal
dizia mais de nós que todas as palavras,
e bastaria um fio para que o rio descesse, inelidível,
as grandes avenidas por onde caminhámos,
vestindo de azul e de miragens
a margem deslumbrada da manhã,
como se um salitre de vento, escorrendo pelos dedos,
nos concedesse ainda a ousadia
de convocar para nós a utopia,
com que se move a força das marés.