sábado, 21 de junho de 2014

Celebração

Celebração



Dobámos a seara dos sentidos
marulhando sementes do afecto
e no cume dos  dias pressentidos
enfeitámos de estrelas nosso gesto

Levedámos o pão de amor e espanto,
torturámos os corpos, amassando-o
e afastando de nós o desencanto,
repetimos a ceia, celebrando-o

Trocámos nossas côdeas, uma a uma,
vertemos sobre o corpo as duas taças,
desfizemos certeiros a penumbra,
mastigámos ausências e mordaças

Afastámos o frio que nos cingia
     o rendilhado gesto sublimado
     e sentimos que, no fundo, ainda havia
     um sonho, tantas vezes, adiado

     Estendemos sobre a mesa essa toalha
     que tuas mãos bordaram com ternura,
     dispusemos a fruta, o pão, a água
     e repartimos o vinho da loucura





                                                    Fernando  Fitas – Canções dispersas

Aguarela Alentejana


Aguarela Alentejana



Numa açorda de poejo
se aconchegam as manhãs:
uma azeitona e um beijo
com aromas de hortelã

Sobre a toalha de linho
com orégãos e açafrão
está um  jarro de bom vinho
sempre ao alcance da mão

As bolotas, concerteza,
colhidas em tempo certo,
colocam-se sobre a mesa;
fica o quadro completo

Do azinho se solta o lume
com que se aquece o serão,
das urzes sai o perfume,
do trigo se faz o pão

Na sopa de beldroegas
matámos a solidão
com um tinto da adega
p’ra celebrar, pois, então!...

Paisagem do Alentejo
aguarela por pintar,
com cardo se faz o queijo,
sobremesa do jantar

E se uma flor de aloendro
passear de mão em mão
há laranjas em Novembro
amoras bravas no Verão




                                                    Fernando Fitas – Canções dispersas

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Não me digam aqui que ainda é cedo

Não me digam aqui que ainda é cedo
para intentar o sonho lavrar a terra
reconquistada a pulso por quem sabe
os supremos recantos de seu corpo
ou os nomes as fontes e os ritos
que mais tocam o ventre de seu húmus
que melhor o desbravam e afagam
Clamemos que é já tempo
de semear o trigo e aguardar
o ondular suave da seara
ceifar depois as espigas e amassar
quanta farinha soubermos recolher
e repartir o pão o queijo o vinho
p’ra que mais suculento seja o néctar
que saciar consiga tantas sedes
Fernando Fitas - Do livro "O ressoar das águas, 2004

sem titulo

Ave te chamaria(s) se não fosse
haver em teu olhar uma flor ausente
que derramando vai quanto perfume
vestiu o despontar (despertar) das madrugadas
que de afectos cobriram esta casa.
Por isso flor és não só de rosa
mas de aloendro — creio — e madressilva
e de acácia e de trigo e de poejo
p’ra que melhor nos saibam os desejos
que o marulhar de lábios mais incita.
Guardadora de ventos e de rios
e de nascentes e margens e afluentes
que despidos ainda se apresentem
de quanto néctar houvesse ao seu alcance
sem que tivesse sido recolhido.
Fernando Fitas - Do livro "O Saciar das Aves", 2008.

Soneto para Jacques Brel. Poema de Fernando Fitas na voz de Luísa Basto


Vítor de Sousa lê Fernando Fitas


Sementeira