domingo, 28 de setembro de 2014


De Guernica a Badajoz


           (Para que a memória não se apague da nossa memória)

        De Guernica a Badajoz

Soubemos de Guernica pelo som das explosões
assim que as naves de aço despejaram ogivas sobre as casas,
fragmentando sonhos e decepando vidas.
E pouco mais pudemos do que lamentarmo-nos
do imponente frio que se abatera, então, sobre as nossas cabeças,
deixando-nos, inclemente, o fel  da impotência.

Não eram cinco da tarde. Mas um tempo de fogo,
e um lugar tão sem tempo,
que os relógios não sabiam ainda decifrar.
Tivemos assim a certeza de que os únicos elementos de medição
se limitavam ao irregular diâmetro das crateras
e ao súbito fascínio em destruir a esperança
de quem, por suas mãos, ousou tecer, tão-só,
um casulo de afecto e liberdade.

         Por isso guardámos o pavor instalado nos olhos das crianças,
         quando a guarda investiu pelos quintais da vila
para rasgar silêncios (cúmplices e solidários)
e intimar as mães
a entrar na viagem de uma estação apenas.

Oficiantes de um culto condenável,
não eram arianos, falangistas ou mouros
os que berravam ordens de cima das montadas,
vociferando aos detidos que estugassem o passo:
Era o clamor do ódio envolto numa farda
que atirando os cavalos sobre os refugiados indefesos,
acordava fagulhas no empedrado negro da calçada,
impondo  aos moradores das ruas envolventes
o recolher urgente a suas casas.
  
Badajoz estava ali à mercê de um olhar
como se a frincha da nossa porta,
(por onde todas as manhãs o dia se levanta),
subitamente ganhasse a dimensão de uma janela
e dela vislumbrássemos o outro lado da fronteira,
divisando um cortejo de medo e sobressalto(s)  
como lâminas de angustia
tatuando na pele cicatrizes de espanto.

Não ouvimos os tiros, bem sabemos.
Somente perscrutámos
o fumo libertando-se do cano das espingardas.
Mas retivemos o som
cavo e perene
de quantos corpos
tombaram na arena.

Fernando Fitas  - inédito –Setembro 2014


quinta-feira, 4 de setembro de 2014



         Morre-me nos lábios a água

Morre-me nos lábios a água de tanta sede oculta.
Por ela sei do rio que desperta no sangue
a cintura do fogo
e acorda nas virilhas
o indizível êxtase da luz.

Uma ânfora apenas guarda o fluir das mãos
mergulhadas no cio de todas as palavras,
e sortilégios outros que ao barro confiaram
os seculares desígnios de tão intenso lume. 

São rios clandestinos os lábios desta sede
de imaculadas águas.
Com eles ousarei, secretamente,
a transgressão das margens;
direi que me pertencem os pequenos delitos
de quantos marinheiros intentaram na areia
um cais onde aportar os abismos do corpo,
e gritarei  teu nome em cada gota ausente,
mordendo na garganta palavras interditas.


Fernando Fitas – Inédito 2014
(Exercício sobre um guache de Francisco Simões

concebido em 1992 para capa de outro livro do autor) 

quarta-feira, 3 de setembro de 2014


Alentejo




Comove-me a branca serenidade da cal
embebedando de luz as fachadas das casas,
ancestralidade singular de quem as construiu
para habitar um tempo
eternamente feito de futuro,
onde as manhãs despertam,
no limiar das flores
que dizem das janelas,
quantos perfumes circulam nas calçadas.


Há um remoto soar de vozes em cada esquina,
como se uma sentinela permanecesse ainda
contando das searas a dimensão das espigas,
e o latido de um cão,
que ao longe reclama 
a breve companhia de um afago,
quando o vento se abraça às velhas oliveiras
na volúpia de um fogo intemporal e sábio.


Tudo aqui são raízes falando por silêncios.
Entre barros e pedras,
só o pó dos caminhos
sabe os itinerários de homens e animais. 
Eleva-se da terra um cheiro que me dilata as veias.
Este cheiro pertence-me,
este sol
tão despido como o rio
que me ofereceu a água tantas vezes,
volta-me agora a refrescar de infância.

Fernando Fitas - Inédito

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Sobre uma pedra escrevo
(  (A  propósito de uma varina de Francisco Simões)

Sobre uma pedra escrevo
a claridade infinita dos teus olhos
iluminando a praia a que aportaram
todos os barcos
cansados de viagens.

Há prodígios nos dedos
desenhando na areia
inavegados rios
em busca de navios.
Em seus porões vazios apenas a memória
de outras longínquas águas
e um secreto desejo
ainda reclamando
o derradeiro pólen das palavras.

Sei-me sentado aqui
há muito tempo,
entre um templo de luz
que tudo esconde e nega
e a sedução plena da miragem,
insinuando no vértice dos lábios
um nome pelo fogo inominado.

Entardecem-me as têmporas
e as mãos
somente reconhecem do teu corpo
a volúpia do quanto recusaste.
É o instante então de celebrar-te,
deixando-te na pedra onde te escrevo,
o aroma que o mar
colocou nos teus cabelos,
para que possa, enfim,
contemplar-te.

Fernando Fitas (Portugal)