terça-feira, 24 de novembro de 2015




  
Deixa a fala espraiar-se

Deixa a fala espraiar-se em teu olhar,
deitar-se nas palavras quando a boca se cerra
para conferir aos dedos o domínio da sombra, a leveza da luz,
ou apenas o rasto que do silencio emerge,
deixando na memória a rosácea lembrança de um fogo sobre a pele.
Excedentária é somente a semente sem fruto,
o possível lugar que ao abandono oferece
o viço da flor que houver em nossas mãos.
Tudo o resto é eterno como um beijo na água;
uma espiga de trigo cegando de amargura o gesto da colheita;
uma cortina abrupta de vento nos cabelos;
a rectilínea ausência que o coração das aves empresta  a cada voo.

Quotidianamente embrulhamos desejos
no lençol da infância,
com a  secreta esperança de adiarmos a morte indefinidamente.
Assim coleccionamos vestígios e destroços;
acumulamos raivas, revoltas e cansaços
e o suave veneno que nos impede os braços
de disparar num sopro os estilhaços de rosas
nas vitrines dos bares aonde não entrámos,
mas onde celebramos afectos e ternura  
erguendo nossas taças.

Recusa-me contudo moratórias
que intentem soterrar o rio ainda na nascente
ou adiar o resgate de quantos sonhos e  pão
colocamos sobre a mesa.
Não é este o instante de conceder aos olhos a demora finita
das trágicas noticias que os jornais nos revelam.
  
Quem carrega a espingarda nunca assesta o disparo,
não cede sua mão para soltar o tiro,
porque em seus pés de chumbo se cumulam disfarces
de (in)veneráveis ritos,
que apenas reconhecem
(entre a fuligem espessa que seus gestos ilude)
a arrogante sombra do poder  dos cifrões.

Morte ominosa esta, que despedaça vidas
na insuspeita inocência da(s) calçada(s)!
Não deixes que a sombra de um petardo pese nas tuas pálpebras;
um pássaro nocturno venha exibir a presa
na interdita superfície da janela,
ou um ruído ignóbil incomode as flores
que as crianças semeiam à beira de um sorriso.
Por elas, não te cales! Bebe-lhes cada gesto.
Ergue os olhos e sonha. Compulsivamente.
Mesmo que os pulsos sangrem. E nada mais te reste
do que a  fala que habitará em teu olhar  - eternamente.

Autor: Fernando Fitas        Novº 2015  
( foto: Internet)






3 comentários:

  1. E quando os olhos te pesarem, baixa as pálpebras com um puxar de cortinado, bem arrendado, para deixar entrar o sol e falares com as tuas
    mãos.

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  2. Respostas
    1. boa tarde, amiga. Peço desculpa pelo atraso na resposta, mas só hoje vim ao blog. Bem haja.

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