sábado, 29 de novembro de 2014

Outro dos poemas do livro


Trago meu pai nos ombros e não sei
dizer quanto me pesa
a enorme leveza do seu nome
mas sei que cada sílaba é quase uma galáxia
atravessando o mapa de uma vida ou de uma flor
que guardei depois da tempestade
como um veleiro sem vento   resgatado
no efémero tempo de um relâmpago

Escrevo ainda seu nome na areia
onde a espuma da onda se derrama
para que minhas mãos colham o sal
convoquem aves nocturnas ou a chuva

e desenhem seus sonhos sobre a água      
Poema de inicial do livro " Alforge de Heranças" , vencedor do Prémio de Poesia e Ficção de Almada 2014,  cuja edição está agendada para Março

Memória Descritiva

Guardo da casa o perfume das rosas
erguendo primaveras no quintal
e a festiva sinfonia dos pássaros
anunciando os dulcíssimos frutos da figueira

Retenho ainda os gestos de meu pai
abrindo a porta das traseiras
pelo lado de dentro da ternura
(quando a manhã estendia os primeiros raios)
para retirar do poço o balde de água
e regar o canteiro onde floria a hortelã
Cumpria assim o rito matinal
de alimentar de aromas a vida dos que nela viviam

Solitária ficou desde o instante
em que meu pai dela se despedira
e minha mãe recolheu sua inominável ausência
no avental de luz que lhe restou
para cerzir  de saudade os dias que lhe sobram


Campo de antigas lembranças e afectos 
não pisava   há muito    este chão mátrio
mas o tempo permanece nos retratos
que as molduras guardaram nas paredes
como o perene lugar de todas as memórias

Entro   e sei que o forno não cose já o pão
nem o azinho crepita na lareira
afugentando o frio de quantas neves
os remotos invernos carpiram no telhado
Sequer o marulhar dos rios que sob a tijoleira gasta se ocultavam
alimentando meu infantil sonho de viagens
Sem o calor de quem ergueu a casa
sobrou-lhes a distância que carregaram
e decidiram secar as suas águas
Agora   resta apenas o cheiro da última fornada

e um punhado de cinzas    desoladas

domingo, 28 de setembro de 2014


De Guernica a Badajoz


           (Para que a memória não se apague da nossa memória)

        De Guernica a Badajoz

Soubemos de Guernica pelo som das explosões
assim que as naves de aço despejaram ogivas sobre as casas,
fragmentando sonhos e decepando vidas.
E pouco mais pudemos do que lamentarmo-nos
do imponente frio que se abatera, então, sobre as nossas cabeças,
deixando-nos, inclemente, o fel  da impotência.

Não eram cinco da tarde. Mas um tempo de fogo,
e um lugar tão sem tempo,
que os relógios não sabiam ainda decifrar.
Tivemos assim a certeza de que os únicos elementos de medição
se limitavam ao irregular diâmetro das crateras
e ao súbito fascínio em destruir a esperança
de quem, por suas mãos, ousou tecer, tão-só,
um casulo de afecto e liberdade.

         Por isso guardámos o pavor instalado nos olhos das crianças,
         quando a guarda investiu pelos quintais da vila
para rasgar silêncios (cúmplices e solidários)
e intimar as mães
a entrar na viagem de uma estação apenas.

Oficiantes de um culto condenável,
não eram arianos, falangistas ou mouros
os que berravam ordens de cima das montadas,
vociferando aos detidos que estugassem o passo:
Era o clamor do ódio envolto numa farda
que atirando os cavalos sobre os refugiados indefesos,
acordava fagulhas no empedrado negro da calçada,
impondo  aos moradores das ruas envolventes
o recolher urgente a suas casas.
  
Badajoz estava ali à mercê de um olhar
como se a frincha da nossa porta,
(por onde todas as manhãs o dia se levanta),
subitamente ganhasse a dimensão de uma janela
e dela vislumbrássemos o outro lado da fronteira,
divisando um cortejo de medo e sobressalto(s)  
como lâminas de angustia
tatuando na pele cicatrizes de espanto.

Não ouvimos os tiros, bem sabemos.
Somente perscrutámos
o fumo libertando-se do cano das espingardas.
Mas retivemos o som
cavo e perene
de quantos corpos
tombaram na arena.

Fernando Fitas  - inédito –Setembro 2014


quinta-feira, 4 de setembro de 2014



         Morre-me nos lábios a água

Morre-me nos lábios a água de tanta sede oculta.
Por ela sei do rio que desperta no sangue
a cintura do fogo
e acorda nas virilhas
o indizível êxtase da luz.

Uma ânfora apenas guarda o fluir das mãos
mergulhadas no cio de todas as palavras,
e sortilégios outros que ao barro confiaram
os seculares desígnios de tão intenso lume. 

São rios clandestinos os lábios desta sede
de imaculadas águas.
Com eles ousarei, secretamente,
a transgressão das margens;
direi que me pertencem os pequenos delitos
de quantos marinheiros intentaram na areia
um cais onde aportar os abismos do corpo,
e gritarei  teu nome em cada gota ausente,
mordendo na garganta palavras interditas.


Fernando Fitas – Inédito 2014
(Exercício sobre um guache de Francisco Simões

concebido em 1992 para capa de outro livro do autor) 

quarta-feira, 3 de setembro de 2014


Alentejo




Comove-me a branca serenidade da cal
embebedando de luz as fachadas das casas,
ancestralidade singular de quem as construiu
para habitar um tempo
eternamente feito de futuro,
onde as manhãs despertam,
no limiar das flores
que dizem das janelas,
quantos perfumes circulam nas calçadas.


Há um remoto soar de vozes em cada esquina,
como se uma sentinela permanecesse ainda
contando das searas a dimensão das espigas,
e o latido de um cão,
que ao longe reclama 
a breve companhia de um afago,
quando o vento se abraça às velhas oliveiras
na volúpia de um fogo intemporal e sábio.


Tudo aqui são raízes falando por silêncios.
Entre barros e pedras,
só o pó dos caminhos
sabe os itinerários de homens e animais. 
Eleva-se da terra um cheiro que me dilata as veias.
Este cheiro pertence-me,
este sol
tão despido como o rio
que me ofereceu a água tantas vezes,
volta-me agora a refrescar de infância.

Fernando Fitas - Inédito

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Sobre uma pedra escrevo
(  (A  propósito de uma varina de Francisco Simões)

Sobre uma pedra escrevo
a claridade infinita dos teus olhos
iluminando a praia a que aportaram
todos os barcos
cansados de viagens.

Há prodígios nos dedos
desenhando na areia
inavegados rios
em busca de navios.
Em seus porões vazios apenas a memória
de outras longínquas águas
e um secreto desejo
ainda reclamando
o derradeiro pólen das palavras.

Sei-me sentado aqui
há muito tempo,
entre um templo de luz
que tudo esconde e nega
e a sedução plena da miragem,
insinuando no vértice dos lábios
um nome pelo fogo inominado.

Entardecem-me as têmporas
e as mãos
somente reconhecem do teu corpo
a volúpia do quanto recusaste.
É o instante então de celebrar-te,
deixando-te na pedra onde te escrevo,
o aroma que o mar
colocou nos teus cabelos,
para que possa, enfim,
contemplar-te.

Fernando Fitas (Portugal)


segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Um sheik troca tintas

Texto que encontrei numa gaveta onde costumo guardar outras coisas. 
Apesar do tempo já decorrido sobre a data em que foi escrito, permanece actual. 

Não há campo maior onde quem volta
se sinta mais ferido e humilhado
e se rebele e ouse e denuncie
o despudor notório e imbecil
de quem não sendo nada se presume
um  sheik  numa  arábia proclamado.

E nesse enlevo torpe de quem bebe
o arroto que exala e se desprende
da sua bebedeira de vaidades,
não poderá saber o verbo certo
quando o substantivo é igualdade.

Não sei se verdade é, mas há quem diga
ter-lhe fugido a mão para a pedra certo dia
quando soares falou de rio maior,
'lapsus linguae' que um UDP menor não consentia.
Contudo, esse artilheiro anos volvidos,
esquecido do disparo de seu gesto
às hostes socialistas aportaria.

Por isso aqui vos digo e reafirmo:
Não há campo maior onde aconteçam
burricadas mais vis e indecentes
e tropelias outras que por decoro não conto,
porque atentados são a quanta gente
lhe deu o beneficio do seu voto
fazendo de um troca-tintas presidente.


Eis porque vos repito sem temor:
Não há campo maior onde aconteçam
burricadas mais vis e indecentes.


        F. Fitas.  inédito 2003