Poema de inicial do livro " Alforge de Heranças" , vencedor do Prémio de Poesia e Ficção de Almada 2014, cuja edição está agendada para Março
Memória Descritiva
Guardo da casa o perfume das rosas
erguendo
primaveras no quintal
e a festiva sinfonia dos pássaros
anunciando os
dulcíssimos frutos da figueira
Retenho ainda os
gestos de meu pai
abrindo a porta
das traseiras
pelo lado de
dentro da ternura
(quando a manhã estendia os primeiros raios)
para retirar do
poço o balde de água
e regar o
canteiro onde floria a hortelã
Cumpria assim o
rito matinal
de alimentar de
aromas a vida dos que nela
viviam
Solitária ficou desde o instante
em que meu pai dela se despedira
e minha mãe recolheu sua inominável ausência
no avental de luz que lhe restou
para cerzir de saudade os dias que lhe sobram
Campo de antigas lembranças e afectos
não pisava há
muito este chão mátrio
mas o tempo permanece nos retratos
que as molduras guardaram nas paredes
como o perene lugar de todas as memórias
Entro e sei que o
forno não cose já o pão
nem o azinho crepita na lareira
afugentando o frio de quantas neves
os remotos invernos carpiram no telhado
Sequer o marulhar dos rios que sob a tijoleira gasta se
ocultavam
alimentando meu infantil sonho de viagens
Sem o calor de quem ergueu a casa
sobrou-lhes a distância que carregaram
e decidiram secar as suas águas
Agora resta
apenas o cheiro da última fornada
e um punhado de cinzas
desoladas