segunda-feira, 28 de julho de 2014

Inquieta-me a arrogância das montanhas

Inquieta-me a cinzenta arrogância das montanhas
espreitando há dois mil anos o bulício dos vales,
(qual águia intemporal tombando sobre as casas),
como se a sua sombra intimidasse as chuvas,
impedisse as flores de romper entre as pedras,
ou proibisse as subterrâneas águas
de construírem asas em seus lençóis freáticos. 

Há ofícios tão velhos e tão gastos
que parecem eternos.
Contudo tão inúteis quanto o pó sobre a estrada,
ou as cinzas de um lume que há muito se extinguira.
Não sabem das carícias entre a terra e as ervas,
os afagos trocados entre as aves e o vento,
os olhares de onde emerge o cheiro da liberdade…

Sabem unicamente da arrogância vil
que a si se concederam
porque apenas conhecem a vocação das lavas.


Fernando Fitas - Inédito 2014



domingo, 13 de julho de 2014

Sofia entre o lajedo

Quiseram matar-te uma segunda vez;
soterraram-te os ossos entre as pedras
para que a livre geografia das palavras
definitivamente se apagasse
e não pudesses voltar a ser do mar
a menina que houvera proclamado
Navegações e Ilhas na comunhão das águas.

Presumiram talvez que sob a pompa
com que te encarceraram no lajedo
oculto ficaria o eco do teu canto.
Não te souberem ler estes que hoje
pretendem apagar a tua voz
fuzilando-te, assim,  cobardemente
como os que foram fuzilados em vigilas sem data.

sábado, 21 de junho de 2014

Celebração

Celebração



Dobámos a seara dos sentidos
marulhando sementes do afecto
e no cume dos  dias pressentidos
enfeitámos de estrelas nosso gesto

Levedámos o pão de amor e espanto,
torturámos os corpos, amassando-o
e afastando de nós o desencanto,
repetimos a ceia, celebrando-o

Trocámos nossas côdeas, uma a uma,
vertemos sobre o corpo as duas taças,
desfizemos certeiros a penumbra,
mastigámos ausências e mordaças

Afastámos o frio que nos cingia
     o rendilhado gesto sublimado
     e sentimos que, no fundo, ainda havia
     um sonho, tantas vezes, adiado

     Estendemos sobre a mesa essa toalha
     que tuas mãos bordaram com ternura,
     dispusemos a fruta, o pão, a água
     e repartimos o vinho da loucura





                                                    Fernando  Fitas – Canções dispersas

Aguarela Alentejana


Aguarela Alentejana



Numa açorda de poejo
se aconchegam as manhãs:
uma azeitona e um beijo
com aromas de hortelã

Sobre a toalha de linho
com orégãos e açafrão
está um  jarro de bom vinho
sempre ao alcance da mão

As bolotas, concerteza,
colhidas em tempo certo,
colocam-se sobre a mesa;
fica o quadro completo

Do azinho se solta o lume
com que se aquece o serão,
das urzes sai o perfume,
do trigo se faz o pão

Na sopa de beldroegas
matámos a solidão
com um tinto da adega
p’ra celebrar, pois, então!...

Paisagem do Alentejo
aguarela por pintar,
com cardo se faz o queijo,
sobremesa do jantar

E se uma flor de aloendro
passear de mão em mão
há laranjas em Novembro
amoras bravas no Verão




                                                    Fernando Fitas – Canções dispersas