segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Um sheik troca tintas

Texto que encontrei numa gaveta onde costumo guardar outras coisas. 
Apesar do tempo já decorrido sobre a data em que foi escrito, permanece actual. 

Não há campo maior onde quem volta
se sinta mais ferido e humilhado
e se rebele e ouse e denuncie
o despudor notório e imbecil
de quem não sendo nada se presume
um  sheik  numa  arábia proclamado.

E nesse enlevo torpe de quem bebe
o arroto que exala e se desprende
da sua bebedeira de vaidades,
não poderá saber o verbo certo
quando o substantivo é igualdade.

Não sei se verdade é, mas há quem diga
ter-lhe fugido a mão para a pedra certo dia
quando soares falou de rio maior,
'lapsus linguae' que um UDP menor não consentia.
Contudo, esse artilheiro anos volvidos,
esquecido do disparo de seu gesto
às hostes socialistas aportaria.

Por isso aqui vos digo e reafirmo:
Não há campo maior onde aconteçam
burricadas mais vis e indecentes
e tropelias outras que por decoro não conto,
porque atentados são a quanta gente
lhe deu o beneficio do seu voto
fazendo de um troca-tintas presidente.


Eis porque vos repito sem temor:
Não há campo maior onde aconteçam
burricadas mais vis e indecentes.


        F. Fitas.  inédito 2003 

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Militante (apenas) de utopias

 Caçador de esperas e de sedes,    
 ou pescador apenas de utopias,
        aqui retorno agora como o vento
 para saber das pérolas do rio.

Tornara-se imperioso ser da água,
não apenas a gota que reclama
a dádiva de um sopro
quando o leito das fomes principia,
mas o azul das chuvas e a falas
que convoquem  a seiva da semente,
onde germina  a ânsia mais secreta,
de quem erguendo sonhos alimenta
vértices de fogo e ousadia.

Venho escrever nos muros as palavras,
para  desenhar um dedáleo de ventos
quando o musgo dos dias se anuncia,
e como quem retoma clandestinamente a velha harpa
aqui me reinvento, me reafirmo,
militante das coisas impossíveis,
oferecendo somente as minhas mãos despidas e tão débeis
nas quais carrego (ainda) um ramo de utopias.

Aqui cheguei descalço
só de olhar
os caminhos que há tanto me esperavam.
E recusando sempre o quanto pretendia
avancei pelos campos para beber
o eclodir do cântico dos pássaros
logo que as árvores sabem
dos primeiros sussurros
na folhagem.

No corpo
o mapa de todos os lugares
que ao largo me avistaram,
sem que houvessem logrado apenas o aceno
de um oblíquo olhar,
onde não cabe mais que um golpe de asa.
Talvez aí tenha nascido a cicatriz difusa
que à alma se colou secretamente,
dizendo mais de mim do que as palavras.

Não pretendam por isso, que fale sobre o modo
de colorir as sombras,
quando o sol incide sobre as formas e as distorce.
Sou militante apenas de meus passos,
exijo unicamente o que pressinto.
Não reivindico qualquer lâmina de água
derramando-se em tórridos desertos,
ou o sibilar do tiro que se acha
pela vertigem da presa derrubado.

Entre o disparo da bala e o seu alvo
há sempre um espaço ferido que se cala.
Eu não me calarei!
Mesmo que a voz me morra e só me reste o espasmo
de um coração de pássaro delido,
sei do bulício dos vales riscando traços de luz
na opacidade cinzenta das montanhas;
do viço da areia roçando-se nas águas;
o suspiro do ar quando toca nos lábios
da mais pura mulher
e a subtil ternura da corola dos cardos
pelo orvalho.

Todos eles me habitam
como o silêncio instiga a transgressão no fruto das searas,
assesta de raiva as hastes dos espinhos
e sussurra revoltas tão antigas
que as mãos dos camponeses preferem olvidar.
De todos  retenho  secretamente a alquimia
onde repousa eternamente o sortilégio
que me tornou um militante (apenas) de utopias.
Inquieta-me a arrogância das montanhas

Inquieta-me a cinzenta arrogância das montanhas
espreitando há dois mil anos o bulício dos vales,
(qual águia intemporal tombando sobre as casas),
como se a sua sombra intimidasse as chuvas,
impedisse as flores de romper entre as pedras,
ou proibisse as subterrâneas águas
de construírem asas em seus lençóis freáticos. 

Há ofícios tão velhos e tão gastos
que parecem eternos.
Contudo tão inúteis quanto o pó sobre a estrada,
ou as cinzas de um lume que há muito se extinguira.
Não sabem das carícias entre a terra e as ervas,
os afagos trocados entre as aves e o vento,
os olhares de onde emerge o cheiro da liberdade…

Sabem unicamente da arrogância vil
que a si se concederam
porque apenas conhecem a vocação das lavas.


Fernando Fitas - Inédito 2014



domingo, 13 de julho de 2014

Sofia entre o lajedo

Quiseram matar-te uma segunda vez;
soterraram-te os ossos entre as pedras
para que a livre geografia das palavras
definitivamente se apagasse
e não pudesses voltar a ser do mar
a menina que houvera proclamado
Navegações e Ilhas na comunhão das águas.

Presumiram talvez que sob a pompa
com que te encarceraram no lajedo
oculto ficaria o eco do teu canto.
Não te souberem ler estes que hoje
pretendem apagar a tua voz
fuzilando-te, assim,  cobardemente
como os que foram fuzilados em vigilas sem data.