sábado, 29 de novembro de 2014

Poema inicial da segunda parte da obra e  Resumo das Heranças, poema que encerra o livro



                      I
Meu pai saiu de madrugada e não voltou
Ia afagar a terra e saciar as árvores
semear aloendros em redor da nogueira
(que meu avô lhe dera havia anos)
falar aos animais e sossegar as águas
Sentou-se numa pedra junto à fonte
despejou o alforge e não comeu
Bebeu os primeiros raios da manhã
fitou o horizonte e adormeceu

Levou nos braços um ramo de coentros
para temperar os dias e as sedes
que seu tocar os ventos presumia
Nos ombros    uma enxada puída e já sem uso
e um dedal de vinho e um sorriso
para abraçar as aves e os rios
que nesse lugar outro o aguardavam


Agora está  -presumo-  a confiar às estrelas
quantas searas de afectos semeou
e a soletrar as sílabas e os verbos
de quantos versos ainda me outorgou
para que deles eu tenha o resguardado pão
que seu tocar a terra me legou

Cansou-se de guardar   direi   as margens ressequidas
de uma esperança ausente e confiscada
e decidiu partir de madrugada
para abraçar os longes que sabia
capazes de afastar a lassidão dolente 
deste país ao sul e despojado


Resumo das heranças

Ficam aqui as falas derradeiras  
Tão breve é pecúlio que coubera
na preservada cesta onde abriguei
as cartas de bem-querer e os afectos
que foram meu alento e o alívio
nos trilhos a que fui sem recear
o verbo conjugado com o vento

E se encontrado está o ponto cardeal
ou se quiseres     a Úrsula Menor do esquecimento
não há porque temer ou vacilar
e sigamos as subterrâneas águas que demandam
a recolha do fruto no seu tempo

Meus amigos partiram    já o disse
sem provarem das uvas  quanto mel
concedido  lhes fora para a ceia
mas seu lugar à mesa permanece
na partilha do pão e das revoltas
que ao mais pequeno toque recrudesce


Saibamos ser     proclamo     o sonho e a utopia
de reaver o que nos foi negado
e pendurando as uvas no sobrado
da casa da memória que nos resta
juntemos todos os bagos ou lembranças
ao néctar que se assoma em cada verso
para que os ventos venham e se abasteçam
do suculento travo de ousadia

Interpelemos também os dias sobre os campos
cercados de silêncio     angústia     raiva
para reacendermos cada extinta fogueira
sem esperar que os deuses dominantes
nos venham inquirir sobre os desígnios
que buscamos lograr com nosso canto

Escuto melhor    assim   o ciciar das aves ao relento
e o marulhar dos rios que se aproximam
e suspenso no lume desses fogos
que meus dedos recolhem e contemplam
sou um sopro de vento que não cede
e nessa resistência permaneço


Meu pai   repito    saiu de madrugada e não voltou
cansado deste país ao sul   acocorado
Por isso tenho um anelo de fogo que me incita
um velo de ausências que me aquece
e um silêncio mordido que me impele         
a intentar ainda verso a verso
empunhar a firmeza de quem sabe
haver no vento uma bandeira disponível
que aguarda quem a erga    desfraldada

2 comentários:

  1. Muito bom. Olhe o conheci hoje através de Irene Coimbra que faz o programa Ponto e vírgula no Brasil. Eu gostaria de lhe permitir permissão para fazer parte dos poetas que tenho no meu blog Laços de Poesia. Seria um prazer.

    Fernanda

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    1. boa tarde. Espero que me releve o atraso na resposta à sua questão, mas lamentavelmente só hoje vi o seu comentário. Venho pouco aqui ao blog. Em todo o caso, está autorizada. Saudações.

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