sábado, 9 de abril de 2016

   
Beija a flor assim…


 Beija a flor assim, suavemente,

  guarda nas mãos  a  urze, o trigo, o feno;

  pousa os olhos na haste recurvada:
  
  bebe, então, o perfume, liberta a voz,

  lograste finalmente a madrugada.



  Ergue depois o tronco, afaga o rosto,

  deposita a semente, lavra a terra,

  acaricia o pão e prova o vinho;
              
  leva os dedos aos lábios, respira  fundo,

  e teus serão o pólen e os caminhos.



  Deixa o espasmo crescer na/em tua boca,

  solta ainda um aceno ou uma lágrima

  se uma espécie de fogo se insinua:

                      não retenhas o sangue que te incendeia as têmporas                                               
  e todas as bandeiras serão tuas.
                 


 Por fim, descruza as pernas, estende os braços,

 dança sobre ti mesma, rodopia,

 como se fosses águia ou mariposa.

 No esvoaçar dos teus cabelos, sabe(s)?,

 é que se eleva o vento, o mar, a rosa.



                                           
                    Fernando Fitas/2016




                                                                                

quarta-feira, 25 de novembro de 2015


   Aquece as minhas mãos


Aquece as minhas mãos nos teus joelhos hoje.
Há nelas o ruído de um frio perturbando o silêncio,
o rumor de um gemido subindo pelo sangue,
o estilhaço de um grito ferindo na garganta
e um nó no pescoço, por dentro da ausência,
que dói até aos ossos.

É nas mãos este frio. Morde a pele e as veias como cães sem destino;
pelo sangue se interna rosnando suas fúrias
para suster a presa e afiar os dentes.
Tão ávido de morte, de gelo se contenta,
mas não sabe, contudo, que os frutos em teu ventre
se alimentam de sílabas fraternas
que adejam primaveras no vórtice da língua
e doam à cidade solidários jardins.

Fita-me bem nos lábios e saberás ainda das flores
que nasceram das pedras,
reclamando a luz de quantas velas confiaram seu derradeiro ofício
à  suprema missão de outorgar afectos
e preservar vestígios de ternura
na improvável  memória da calçada:
São flores que extravasam a solidão de um verso,
com pétalas que explodem no coração da(s) rua(s);
sobem como perfume à altura dos olhos
e desprendem os rios escondidos sob as pálpebras,
restituindo aos lábios a única palavra
que recusando ocupa o horizonte branco da saudade.


Fernando Fitas                Novº. 2015

Foto: Internet






terça-feira, 24 de novembro de 2015




  
Deixa a fala espraiar-se

Deixa a fala espraiar-se em teu olhar,
deitar-se nas palavras quando a boca se cerra
para conferir aos dedos o domínio da sombra, a leveza da luz,
ou apenas o rasto que do silencio emerge,
deixando na memória a rosácea lembrança de um fogo sobre a pele.
Excedentária é somente a semente sem fruto,
o possível lugar que ao abandono oferece
o viço da flor que houver em nossas mãos.
Tudo o resto é eterno como um beijo na água;
uma espiga de trigo cegando de amargura o gesto da colheita;
uma cortina abrupta de vento nos cabelos;
a rectilínea ausência que o coração das aves empresta  a cada voo.

Quotidianamente embrulhamos desejos
no lençol da infância,
com a  secreta esperança de adiarmos a morte indefinidamente.
Assim coleccionamos vestígios e destroços;
acumulamos raivas, revoltas e cansaços
e o suave veneno que nos impede os braços
de disparar num sopro os estilhaços de rosas
nas vitrines dos bares aonde não entrámos,
mas onde celebramos afectos e ternura  
erguendo nossas taças.

Recusa-me contudo moratórias
que intentem soterrar o rio ainda na nascente
ou adiar o resgate de quantos sonhos e  pão
colocamos sobre a mesa.
Não é este o instante de conceder aos olhos a demora finita
das trágicas noticias que os jornais nos revelam.
  
Quem carrega a espingarda nunca assesta o disparo,
não cede sua mão para soltar o tiro,
porque em seus pés de chumbo se cumulam disfarces
de (in)veneráveis ritos,
que apenas reconhecem
(entre a fuligem espessa que seus gestos ilude)
a arrogante sombra do poder  dos cifrões.

Morte ominosa esta, que despedaça vidas
na insuspeita inocência da(s) calçada(s)!
Não deixes que a sombra de um petardo pese nas tuas pálpebras;
um pássaro nocturno venha exibir a presa
na interdita superfície da janela,
ou um ruído ignóbil incomode as flores
que as crianças semeiam à beira de um sorriso.
Por elas, não te cales! Bebe-lhes cada gesto.
Ergue os olhos e sonha. Compulsivamente.
Mesmo que os pulsos sangrem. E nada mais te reste
do que a  fala que habitará em teu olhar  - eternamente.

Autor: Fernando Fitas        Novº 2015  
( foto: Internet)






sábado, 21 de novembro de 2015

O Silêncio da Fala


Antes que um resíduo de vento se insinue sobre as árvores
e não seja mais do que nudez e abandono
o que seus ramos falam,
eis-me aqui:
exposto à delituosa corrosão do silêncio,
para saber de cor o respirar das rãs numa lagoa seca,
o sussurrar dos fenos quando o fogo da lâmina
subitamente lhes decepa o caule,
ou o ruído da sombra num campo abandonado.

Poderá vir a chuva reclamar penhores desconhecidos
que a caducidade das folhas  ignora.
Estou aqui como um louco ou um mendigo,
a quem roubaram a tranquilidade diária do hospício
ou a amável companhia de uma esmola de sol.

Um bando de aves chega para atestar que a solidez dos ramos
conhece mais da terra que a semente.
É no vício do olhar que explode suas asas
e as folhas se oferecem ao bulício da queda.
Uma mulher suspende o andar junto à margem do rio.
Sabe talvez que alguém se banhará algures nas suas águas
quando chegar o verão,
para guardar na pele a essência das flores e dos arbustos
que perfumaram  um dia (a) sua infância.

Não tenho porque temer.
As minhas mãos abertas procuram nas palavras
o primitivo som do breve aceno
que seu perfume antigo espalhou no meu casaco,
emprestando a meus dedos,
inebriados de prodígios e  sonhos,
a luz de todas as florestas onde ninguém ousou entrar.

É nas palavras que o tempo se dissipa e encontra refúgio.
É com elas que diz da solidez das pedras;
a dureza versátil do barro,
a matricial temporalidade das flores
num campo minado de raivas e afectos.
Guardai a minha fala assim que o rio transborde
e as margens se aconcheguem  à caricia das águas.
Nela haverá, ainda a polifonia de todos os naufrágios   
que as marés testemunham e os deuses ignoram
- tão ávidos de sede, como o vinho dos mortos,

tão prenhes de eternidade que nem o céu vislumbram.



Fernando Fitas            Novº. 2015